Resgatando a história do “General Desodorante”, lembrei que anos atrás, por duas vezes falei com Elmar Bones, um dos mais importantes jornalistas do Estado do Rio Grande do Sul. Entre os assuntos comentados, o jornalista Elmar mencionou o professor Millo Raffin engenheiro civil, de minas, químico, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ambientalista e engenheiro na CORSAN – Companhia Sul-Rio-grandense de Saneamento) e progenitor do editor Blog Dinheiro Público.
Numa das conversas o jornalista Elmar Bones falou muito ao editor do Blog Dinheiro Público sobre o Caso da Borregard. A empresa norueguesa de celulose, Borregaard, e a comunidade de Guaíba, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que travaram o maior embate ambiental em solo gaúcho.
O jornalista Elmar Bones trabalhou na revista Veja na capital paulista. Desde então exerceu as funções de repórter, editor e diretor nas redações de grandes veículos da mídia nacional, como Folha da Manhã, Coojornal, Gazeta Mercantil, O Estado de S. Paulo e IstoÉ.

Foi o editor-chefe dos álbuns História Ilustrada de Porto Alegre e História Ilustrada do Rio Grande do Sul, publicados em fascículos e encartados no jornal Zero Hora em 1997 e 1998, respectivamente.
Em 17 de março de 1972 começa a funcionar no município gaúcho de Guaíba, às margens do Lago/Rio Guaíba, a fábrica da empresa de celulose de origem norueguesa Borregaard. A instalação da empresa foi fruto de um esforço da ditadura civil‑militar brasileira que, para isso, passou por cima de procedimentos padrões, como a necessidade de alvará da Secretaria Estadual de Saúde e de pareceres técnicos favoráveis à sua instalação.

Logo que se iniciam os trabalhos da fábrica, a população porto‑alegrense é afetada pelo mau cheiro: isso provoca grande transtornos na saúde dos habitantes, resultando em problemas como tonturas, irritação das mucosas, náuseas e vômitos, além de grande revolta por parte da população.
Partindo desse acontecimento, a sociedade porto‑alegrense começou a tomar consciência das questões ecológicas e da necessidade de diminuição do impacto ambiental, ajudando a dar mais repercussão a demandas de grupos ecologistas, como a Associação Gaúcha de Proteção Ambiental (Agapan).
A instalação da fábrica em Guaíba gerou polêmica devido ao mau cheiro e à contaminação do Lago/Rio Guaíba por efluentes, levando a intensos debates sobre poluição e qualidade de vida.
Inexistia a “lei do EIA/RIMA” no Brasil. A base legal para o EIA/RIMA é a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), a Resolução CONAMA nº 001/86 e o artigo 225 da Constituição Federal.
E a falta de alvará da Secretaria Estadual de Saúde do RS e de pareceres técnicos favoráveis à sua instalação colocou em risco a operação da Borregard.
É no texto desse jornalista Elmar Bones que temos as informações do quanto é importante o licenciamento ambiental, principalmente para os empreendimentos de altíssimo potencial poluidor, como por exemplo, aterros sanitários e de celulose.
O jornalista Elmar Bones publicou no veículo de comunicação gaúcho, “Jornal Já”, a matéria com o texto Lições da Borregaard em 3 de maio de 2015.
Isso já faz 10 anos passados. A matéria do jornalista Elmar Bones é uma das mais importantes que trata do meio ambiente do Rio Grande do Sul.
O Blog Dinheiro Público sugere aos leitores conhecerem a íntegra da matéria com o título Lições da Borregaard do jornalista Elmar Bones. Que pode ser lida a seguir.
Lições da Borregaard
“Eram 15 horas do domingo (03), quando entrou em operação a nova unidade da Celulose Riograndense, em Guaíba. O primeiro fardo de celulose vai se materializar dois dias depois, tempo em que se completa o circuito da produção – da entrada da madeira (cavacos de eucalipto) até a saída da pasta de celulose na ponta final do processo industrial.
Quando estiver operando a pleno, em setembro, será uma das maiores e mais modernas fabricas de celulose do mundo, capaz de produzir dois milhões de toneladas por ano.
Ao preço de hoje, em torno dos 700 dólares a tonelada, terá um faturamento de 1,4 bilhões de dólares por ano.
Um projeto exemplar no capitalismo brasileiro: investimento privado, sem isenção de imposto, relações de trabalho evoluídas, integração com a comunidade.
E, no entanto, tudo começou com um fracasso.
O projeto de uma grande fábrica de celulose à margem do Guaíba foi apresentado aos gaúchos em 1971, sem chance para discussão das partes interessadas. Moradores de Porto Alegre e Gravataí não participaram de audiência pública para a apresentação do Projeto da fábrica de celulose.
Era um projeto privado de um grupo norueguês, Borregaard, com financiamento do governo militar brasileiro.
Dizia-se que a grande fábrica ia funcionar como uma alavanca para a industrialização do Rio Grande do Sul. Era o grande projeto que o regime militar devia ao Estado.
Mais tarde se soube que a fábrica entrou em funcionamento sem qualquer estudo de impacto ambiental.
Um relatório técnico alertava para o risco de poluição das águas que abastecem Porto Alegre e toda a região metropolitana, mas foi engavetado.
Quando o cheiro de enxofre exalado da chaminé na outra margem do lago passou a tomar Porto Alegre nos dias de vento sudeste, os moradores da capital gaúcha se assustaram.
Passaram a dar ouvidos aos militantes do movimento ambientalista, que tinha à frente José Lutzenberger e sua aguerrida Agapan.
O pior não era o cheiro, insistia Lutzenberger. O pior era o que estavam lançando na água que abastece a cidade: resíduos de madeira num caldo químico altamente tóxico. Estudos da universidade identificaram indícios de dioxinas na deformação em peixes.
A campanha dos ambientalistas ganhou a adesão da Associação Médica, da Ordem dos Advogados e do Correio do Povo, o jornal mais influente do Estado na época.
O Sr. Jair Soares, então secretário da Saúde do RS, obteve na Justiça autorização para fechar a fábrica, até que ela colocasse filtros para eliminar o mau cheiro e reduzir a descarga no Guaíba.
Fato inédito na história do Estado, em pleno regime militar, 1973.
José Lutzenberger que fundara a Agapan dois anos antes, mendigando notinhas nos jornais para suas reuniões, tornou-se uma referência nacional.
A Celulose Borregaard virou símbolo do mau comportamento empresarial. Reabriu, foi fechada outra vez três meses depois.
Nesse meio tempo, revelados detalhes do negócio, com excessivos benefícios fiscais, ficou insustentável a situação dos noruegueses.
O governo mais uma vez injetou dinheiro para que o Montepio da Família Militar, um condomínio de coronéis, comprasse a fábrica. Um general assumiu a presidência e empresa passou a chamar-se Rio Grande Celulose Ltda (Riocell).
O “general desodorante”, diziam, que faria sumir o mau cheiro que seguia assolando a cidade quando soprava o sudeste.
A indústria, no entanto, tinha dois pilares. Um processo produtivo bastante moderno e eficiente (menos na parte ambiental) e um modelo de gestão bem avançado, com um corpo técnico altamente qualificado.
Foram os técnicos que perceberam: por mais força que tivessem os generais na época, a questão das emissões de gases e de lançamento de organoclorados nas águas do Guaíba tinham que ter soluções técnicas.
Em 1984, quando já pertencia a um terceiro dono, a Klabin, a empresa havia resolvido a questão dos gases. Naquele ano estava inaugurando uma Estação de Tratamento de Efluentes, na qual havia investido 3,5 milhões de dólares.
José Lutzenberger foi o único do movimento ambientalista presente à inauguração. Ali conversou com ao engenheiro Aldo Sani, superintendente da fábrica.
O circuito de recuperação das águas estava resolvido, atingira níveis satisfatórios. Mas havia os resíduos sólidos, os restos de madeira contaminados que ficariam empilhados a céu aberto – uma fonte de contaminação do solo e das águas.
Ali, Lutzenberger se sentiu desafiado. Ele já discutia com seus seguidores da Agapan sobre como e quando passar da crítica à prática, do discurso à ação.
Aceitou o desafio. Suas pesquisas permitiram à empresa chegar hoje a quase 100% de recuperação dos resíduos sólidos, transformados em solo orgânico e adubo. É um caso exemplar de crítica construtiva, uma das muitas lições que o “caso Borregaard” tem ensinado ao Rio Grande do Sul.” Fonte: https://www.jornalja.com.br/arquivo/licoes-da-borregaard/ (grifos nosso)
O que não consta na matéria do jornalista Elmar Bones.
O relatório técnico que alertava para o risco de poluição das águas que abastecem Porto Alegre e toda a região metropolitana, que como disse o jornalista Elmar Bones, foi engavetado. Esse relatório técnico do professor Millo Raffin tratou da instalação da Borregard em Guaíba.
As advertências prévias de estudiosos sobre os efeitos nefastos dos despejos da produção de celulose bruta, como as do químico Millo Raffin, advertências essas datadas do tempo em que a fábrica ainda era um projeto, haviam caído no vazio, mas a partir de então esses argumentos ganharam espaço nos meios de comunicação.
Na antiga secretaria de obras do Rio Grande do Sul, o ex-secretário titular requereu um Parecer Técnico ao engenheiro Millo Raffin sobre a instalação da fábrica de celulose no município de Guaíba.
Esse Parecer Técnico de autoria do engenheiro químico Raffin recomendou a não instalação da fábrica de celulose em Guaíba. A íntegra desse documento público fulminava esse empreendimento.
Em mãos da Maçonaria gaúcha, essa entidade fez chegar tempos depois ao Secretário da Saúde no RS, Sr. Jair Soares (adiante foi Govenador do RS) uma cópia integral do Parecer Técnico do engenheiro Millo Raffin.
Com o Parecer Técnico do engenheiro Millo Raffin, o Secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, Sr. Jair Soares ingressou na Justiça a qual autorizou o fechamento da Borregard em Guaíba.

O caso Borregaard contribuiu para a conscientização sobre a importância da preservação ambiental e para o desenvolvimento de legislação ambiental mais rigorosa no Brasil. A luta contra a Borregaard demonstrou que a pressão da comunidade pode levar a mudanças significativas na indústria e na forma como as empresas se relacionam com o meio ambiente.
Ironicamente, os despejos malcheirosos da Borregaard vieram a constituir o fermento que fez crescer a massa ambientalista gaúcha. Seria difícil pensar em alguma campanha pré- deliberada que rendesse tamanha exposição na mídia a um movimento emergente.
Os protestos pipocavam e, devido à cobertura da imprensa, se retroalimentavam. A Assembleia Legislativa RS instaurou Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), tomando por gancho os benefícios de dinheiro público que a Borregaard havia recebido para sua implantação, e entidades respeitáveis como as Associações Médicas entraram na briga.
Mesmo assim, levou quase dois anos para que se conseguisse começar a barrar a poluição. No fim de 1973, o secretário da Saúde do Estado foi pessoalmente interditar a fábrica, tendo atravessado o flamante veículo, marca galaxy, a frente do portal de entrada da Borregard.

O advogado e ambientalista Caio Lustosa, ex-vereador de Porto Alegre (entre 1983 e 1988) hoje com 90 anos, é o último dos sobreviventes da velha guarda da Agapan.
Caio Lustosa foi secretário municipal de meio ambiente de Porto Alegre.

Essa Secretaria Municipal do Meio Ambiente promoveu a primeira lei para controlar os agrotóxicos, o mais avançado código ambiental do Brasil.
Foi advogado em uma ação criminal contra a instalação da Borregaard, contra os diretores da Borregaard. Uma ação criminal que acabou não dando em nada. O tribunal gaúcho entendeu que a poluição era de Guaíba, mandaram o processo para (a cidade de) Guaíba e lá morreu.
Inclusive houve o episódio do comandante do III Exército que, na época, saiu do comando para ser diretor da Borregaard.
O presidente da Agapan José Antonio Lutzenberger foi processado, por injúria, difamação, calúnia. Caio Lustosa foi advogado de defesa do Lutz. Diz Caio que arrolou como técnico, o professor Millo Raffin. Era um químico, engenheiro civil, da Corsan – Companhia Riograndense de Saneamento. E o professor Millo Raffin foi testemunha.
Millo Raffin foi vítima de demissão da Corsan. Denunciava a poluição do Guaíba. E daí a Corsan, na época dirigida pela ditadura, afastou esse engenheiro. Millo Raffin ingressou na justiça trabalhista. E sabe quem foi a juíza que decidiu a seu favor? A Rosa Weber.


No TRT-4 Rosa Weber foi presidente (2001-2003) e corregedora (2000-2001). Em 2006, foi nomeada ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), onde permaneceu até 2011, quando foi indicada para o STF.
Rosa Weber concedeu no processo do engenheiro Millo Raffin uma sentença maravilhosa. Ela dizia que, inclusive, estava arriscando a posição dela e tudo, mas deu o ganho de causa ao Millo Raffin e mandou reintegrar na Corsan. E ele se aposentou. Morreu um ano depois no Hospital das Clinicas em Porto Alegre. O governo Olívio Dutra concedeu ao professor Millo Raffin o título de cidadão emérito de Porto Alegre.
Em 2015, o prefeito de Porto Alegre assinou a lei que denomina uma rua como Millo Raffin em Porto Alegre. A Lei Nº 11.768/2015, Projeto de Lei do vereador João Carlos Nedel.
Lei Nº 11.768/2015 denomina Rua Millo Raffin o logradouro público localizado no Bairro Mário Quintana. Homenagem justa ao engenheiro Raffin, ambientalista e engenheiro e professos da UFRGS.

Na ditadura o governo federal indicou o então Comandante do 3º. Exército do Brasil para assumir a presidência da Borregard, o que acabou se concretizando. Popularmente foi chamado de “General Desodorante”. Foi lá plantado supostamente para acabar com o cheiro da Borregard.
Passados mais de 10 anos da publicação da matéria do jornalista Elmar Bones, há no Brasil um “coronel” presidente de empresa privada de resíduos que deseja muito ampliar seu empreendimento passando por cima do EIA-RIMA. Faz lembrar a matéria do jornalista Elmar Bones quando disse que “A instalação da empresa passou por cima de procedimentos padrões, como a necessidade de alvará da Secretaria Estadual de Saúde e de pareceres técnicos favoráveis à sua instalação.”
A Justiça do Rio Grande do Sul proibiu a ampliação de um aterro sanitário de titularidade desse coronel, e determinou que a empresa fizesse o EIA-RIMA. Por sua vez a Fepam, órgão ambiental do Rio Grande do Sul, recentemente indeferiu a Licença Prévia de Ampliação do empreendimento de altíssimo potencial poluidor.
Na verdade esse “coronel” não pertence as Forças Armadas do Brasil. É assim chamado pelas pessoas do seu entorno. Ele é responsável por comandar a empresa, coordenar operações estratégicas no aterro sanitário, e lidar com a gestão administrativa e operacional. Sua atuação como “coronel” está diretamente ligada à liderança, tanto em ações operacionais quanto administrativas. Nada é efeito sem o seu conhecimento.
Se o leitor acha que não ocorrem acidentes ambientais em aterro sanitário no Brasil, deve ler a matéria que tem por título Lixão Padre Bernardo: ‘Trata-se da maior tragédia ocorrida em Goiás desde o Césio-137’, afirma ICMBio que pode ser acessada aqui.
https://goias.gov.br/meioambiente/lixao-padre-bernardo-trata-se-da-maior-tragedia-ocorrida-em-goias-desde-o-cesio-137-afirma-icmbio/
A tragédia no lixão Ouro Verde, em Padre Bernardo/GO, onde o desmoronamento de uma pilha de lixo contaminou o córrego Santa Bárbara e o Rio do Sal, em 18 de junho, tem causado transtornos à população e preocupação à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e outros órgãos ambientais. Para o chefe da APA da Bacia do Rio Descoberto, pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Fábio Miranda, trata-se da maior tragédia ocorrida em Goiás desde o Césio-137, em 1987.
Esse empreendimento aterro sanitário era operado sem licenciamento ambiental. Era previsível acontecer um gigantesco acidente.

Desabamento de lixão em Padre Bernardo (GO) contamina córrego com chorume.
Leia aqui>
https://www.brasildefato.com.br/2025/06/27/desabamento-de-lixao-em-padre-bernardo-go-contamina-corrego-com-chorume/
Hoje a BORREGARD é controlada pelo grupo chileno CMPC (Compañía Manufacturera de Papeles y Cartones) que vem ser uma empresa líder em produtos florestais, celulose e papel, com operações em diversos países da América Latina e em mais de 50 países no mundo. Fundada em 1920, a CMPC é conhecida por suas práticas sustentáveis e investimentos em inovação, buscando constantemente novas soluções para a indústria.
A CMPC pertencente à bilionária família Matte, do Chile, a a qual possui 46 plantas em países como Brasil, Argentina, Colômbia, Equador, México e Peru.

Hoje a BORREGARD é controlada pelo grupo chileno CMPC (Compañía Manufacturera de Papeles y Cartones)